O texto visa demonstrar a importância estratégica da atuação do advogado na definição da estrutura jurídica a ser adotada pelas empresas familiares acerca do seu plano de governança, levando-se em conta a sua capacidade técnica para incentivar e criar os instrumentos jurídicos facilitadores da mediação extrajudicial, no âmbito das soluções cooperativas.
Por necessidade do mercado e políticas institucionais, é crescente a observação de escritórios com foco na mediação e advogados especializados, sendo certo que a mediação bem correspondida amplia a cultura pela autocomposição.
No âmbito do próprio Poder Judiciário adotou-se o chamado Tribunal Multiportas a partir da Resolução 125/2010 na tentativa de desobstruí-lo. Cada um dos meios de consenso seria uma porta (mediação, conciliação, orientação e a própria ação judicial contenciosa) a ser utilizada pelos interessados na administração dos conflitos[i].
Frank E.A. Sander, professor de direito em Harvard, foi o idealizador deste modelo multifacetado (Multi-door Courthouse System), propondo que os tribunais para além do litígio tradicional ofereçam outras opções para a resolução das disputas, como as acima mencionadas e a arbitragem (1976, he delivered a seminal paper, “Varieties of Dispute Processing,” at the Pound Conference)[ii].
Por sua vez, o Código de Processo Civil também faz referências a mediação, destacando-se a possibilidade de designação de audiência de mediação (CPC, art. 334).
Trata-se de implementação de políticas públicas[iii] visando o tratamento adequado dos conflitos, uma verdadeira rede integrada pelos Órgãos do Poder Judiciário, por entidades públicas e privadas, universidades, instituições de ensino, dentre outras organizações especializadas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresenta-se, também, no planejamento estratégico, no auxílio e no incentivo das boas práticas na gestão de conflitos, fixando regras e conteúdo programático para a capacitação de servidores, mediadores, conciliadores e demais facilitadores do consenso[iv].
Para exercer o protagonismo, enquanto mediador extrajudicial e na condução da mediação nas empresas familiares, o advogado. Ele é o agende transformador que trabalha para orientar o empresário na tomada das decisões que lhes são caras, visando a redução dos custos de transação, em última análise, o sucesso das atividades econômicas e a harmonia dos sócios/acionistas/familiares. Diria ser indispensável para o sucesso de qualquer negócio que queira crescer sob uma rocha, pedra firme. Quem mais conhece do negócio do empresário? Ele, e depois o seu advogado, ao menos deveria ser.
Partindo-se da premissa de que para alcançar sucesso e longevidade a empresa familiar precisa ter tanto um negócio saudável quanto uma família saudável (John Ward, in PRADO, Roberta Nioac[v]) cabe um parêntese para tecer alguns comentários sobre as empresas familiares, multifamiliares, empresas de sócios, famílias empresárias e famílias investidoras, pois são fontes de extraordinária riqueza diante da sua margem de participação no PIB Nacional e representação no mercado internacional.
As empresas familiares, em regra, são fundadas por uma pessoa ou casal, com a participação ou não de seus descendentes. Enquanto as multifamiliares são aquelas fundadas e controladas por uma ou mais famílias. Por sua vez, as empresas de sócios são aquelas fundadas por uma ou mais pessoas que não são parentes entre si e compartilham da gestão e do controle. Todas elas podem adotar qualquer porte (desde as microempresas até grandes conglomerados internacionais) e atuar nos segmentos da indústria, comércio, serviços[vi] ou no agronegócio.
É comum encontrar as denominações “famílias empresárias”, cujos membros investem ou empreendem em uma ou mais empresas e “famílias investidoras”, invariavelmente aquelas de elevado poder aquisitivo que participaram da venda de uma empresa, parcela dela ou abriram capital (IPO), mantendo investimentos comuns em imóveis e/ou outros ativos[vii].
Cabe ressalvar, desde logo, que a sociedade contratual entre cônjuges possui peculiaridades especiais, derivadas da legislação civil.
É certo que os cônjuges podem contratar sociedade entre si, desde que casados pelo regime da comunhão parcial de bens (o que se aplica aos companheiros), pelo de participação nos aquestos ou no de separação não obrigatória de bens. É vedada, porém, a constituição da sociedade entre cônjuges casados pelo regime da comunhão universal de bens ou no de separação obrigatória, diante de disposição legal proibitiva (CC, art. 977). Lembre-se, ademais, que um cônjuge não precisa da autorização do outro (outorga conjugal) para a aquisição de quotas ou ações, pois se trata de um direito pessoal, no entanto para a integralização de capital social mediante a transferência de bem imóvel sim, nos termos do disposto no artigo 1.647, I do Código Civil[viii].
Em termos estatísticos e segundo o IBGE 90% das empresas brasileiras que têm o perfil familiar, respondem por 65% do PIP e empregam 75% da mão de obra. Dado preocupante é que, segundo o Banco Mundial, apenas 30% delas chegam na 3ª Geração e 15% sobrevivem a ela, ou seja, apenas metade[ix].
Deste modo, a ausência de planejamento estratégico, administrativo, financeiro, fiscal e orçamentário, bem como a ausência de pacto de convivência familiar societária e da regulação pormenorizada acerca do poder político da empresa, atraem ineficiência para o negócio e repercutem em graves problemas para a perenidade. Não planejar e não institucionalizar as políticas e os planos aumentam sobremaneira os riscos do colapso e do surgimento de litígios insuperáveis.
Uma parcela da estrutura de governança, para aqui falar de mediação, pode emanar de diversos instrumentos e órgãos, a saber: contrato ou estatuto social, acordo de quotistas e acionistas, documentos formativos dos comitês e dos conselhos familiares, e os órgãos de deliberação (assembleia/reunião).
Na prática do dia a dia da advocacia costumo me referir ao “Sistema de Duas Etapas” para a mediação no âmbito das empresas familiares: a) pelo “advogado mediador” responsável na origem pela idealização do modelo de governança para o tratamento dos conflitos, dos comitês e do conselho familiar; b) pelo mediador distante da relação anterior.
O mediador poderá atuar ativamente quando propõe soluções ou passivamente (mas de modo interativo) quando facilita o diálogo e cria cenários para que as partes, os gestores e sócios da empresa familiar construam soluções, e resolvam o conflito ou a dúvida mediante autocomposição.
É no instrumento de governança, de tratamento do conflito, a exemplo dos documentos listados, que estarão presentes as regras a serem adotadas pela empresa familiar no caso de dissenso entre sócios, administradores e gestores de confiança. Esse é o mecanismo a ser acionado, disparado. É a partir dele que se instaura o procedimento ou o processo de mediação que foi idealizado, construído em conjunto.
Ao dar início ao protocolo da mediação nos termos das regras criadas, e pelo sócio/acionista e/ou membro familiar que detenha prerrogativa para tanto, abre-se o Sistema de Duas Etapas, conceito aqui criado e utilizado para efeitos didáticos diante da experimentação.
Em um primeiro momento, é chamado como mediador o idealizador da estrutura jurídica da empresa, que tenha empenhado o seu trabalho para organizar o sistema de governança do tratamento e de solução de disputas. Invariavelmente é o advogado contratado pela organização da empresa familiar, e só poderá atuar condicionado à imparcialidade e se as partes assim definirem por acionar a 1ª Etapa.
Na prática é isso mesmo que ocorre, o advogado comunga dos mesmos interesses, ou seja, vocacionado a solução do conflito de modo célere e com o menor impacto em custos de transação para a empresa, justamente para que esta permaneça como o foco em suas atividades econômicas, e não no litígio interna corporis. Como isso é possível? Por que o sistema funciona? Foi, pois, criativamente criado e instituído repercutindo em eficiência e agilidade.
Neste Sistema de Duas Etapas, a segunda somente é acionada, ou seja, a designação de outro mediador profissional ou de câmara privada especializada em medição, caso o mediador próximo e de confiança das partes, orientador de todo o sistema, criado e pensado conjuntamente com as partes e por elas, não dê conta de repercutir a solução desejada, ou seja, não encontre no consenso nenhuma solução que seja concluída com o acordo.
Quem trabalha diariamente com essas questões que envolve a empresa familiar, e passou construindo o plano estratégico junto aos sócios e aos familiares durante 6 (seis), 12 (doze), 15 (quinze) meses, com o objetivo de perpetuar e fazer com que a empresa não se encaixe no estigma de ser extinta antes ou com a 3ª. Geração, sabe que está mais afeto a ele ou ao conjunto dos profissionais que desenvolveram o projeto, chegar ao consenso na dúvida ou no conflito, pois para dentro do plano a equação do litígio demonstra, de saída, que o resultado da cooperação se sobrepõe em termos de economia dos custos de transação. Trata-se, obviamente de um processo ético.
Questiona-se a filosofia da mediação, calcada no distanciamento, e aqui se defende a proximidade relativa para a construção de soluções criativas e consensuadas. Isso mesmo! Sim. Quando as partes, no caso os sócios/acionistas, detectam no advogado idealizador do plano a confiança e a imparcialidade necessária para elegê-lo mediador extrajudicial, e isso se constrói com o tempo e durante o processo de institucionalização, desde que o profissional tenha conduzido os trabalhos de forma exitosa, cuidadosa e imparcial desde o início, ou seja, atuou pro-negócio, pró-conjunto e pró-comunidade familiar, e não para esta ou aquela parte/interessado.
É certo que ao mediador se aplicam as mesmas hipóteses legais de impedimento e suspeição do juiz, de modo que a pessoa designada para atuar como mediador tem o dever de revelar às partes, antes da aceitação da função, qualquer fato ou circunstância que possa suscitar dúvida justificada em relação à sua imparcialidade para mediar o conflito, oportunidade em que poderá ser recusado por qualquer delas (Lei 13.140, artigo 5º).
Adicione-se a advertência de que o mediador e todos aqueles que o assessoram no procedimento de mediação, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, são equiparados a servidor público, para os efeitos da legislação penal (Lei 13.140, artigo 8º). O mediador fica impedido de assessorar, representar ou patrocinar qualquer das partes pelo prazo de um ano contado do término da última audiência e não poderá funcionar como árbitro ou testemunha (Lei 13.140, artigos 6º e 7º).
De qualquer modo, a 1ª Etapa do Sistema poderá ser obrigatória ou opcional, e as partes definirão isso. Não se vê prejuízo na tentativa de uso das Duas Etapas desde que não haja suspeição, ou revelada a circunstância que possa suscitar dúvidas quanto a imparcialidade, as partes, mesmo assim, definam pelo aceite dentro de um absoluto processo ético, de boa-fé e de transparência levada a termo.
Se a 1ª Etapa não sair a contento, não haverá consenso, instaurando-se a 2ª Etapa. Olha só! Existem grandes chances de a solução ser construída no curso da 1ª. Etapa, conclusão esta que apenas o caso concreto dará, hipótese em que o conflito será solucionado levando em conta o tempo, o custo e adequação do modelo decisório.
Outra indagação que poderia surgir: mas o advogado idealizador não estaria contaminado pelo próprio sistema que orientou, ou poderia haver conflito de interesses? Vejo que não. O Sistema não contamina o advogado idealizador da estrutura jurídica de governança para o tratamento do litígio, e a sua experiência e o profundo conhecimento da empresa e do perfil psicológico de cada membro/sócio/acionista/integrante já são previamente conhecidos, não havendo necessidade da demora para depurar tais questões pelo mediador distante.
O artigo 9º da Lei 11.140/2015 (Lei da Mediação) estabelece que “poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se”.
Aqui está o fundamento para o sistema. A confiança se adquire pelo exemplo na condução dos trabalhos, e nada mais capacitado, que o próprio orientador do projeto idealizado e instituído pelas partes. Em qualquer dos casos, e em qualquer das etapas da mediação, as partes poderão ser assistidas por advogado que atenda aos interesses individuais (Lei 11.140/2015, art. 10).
É importante a ressalva de que para o Sistema funcionar de modo harmônico e produza os resultados esperados, os princípios que norteiam a mediação devem-se fazer presentes, a saber: imparcialidade do mediador; tratamento isonômico das partes; oralidade; informalidade; autonomia da vontade das partes; busca do consenso, confidencialidade e boa-fé (Lei 11.140, art. 1º).
Ressalva-se, ademais, que muitos trabalhos estão sendo realizados de modo compartilhado e eficiente entre escritórios de advocacia especializados, quando, mesmo ao defenderem posições antagônicas, resolvem estabelecer e incentivar o “protocolo de uso de técnicas de mediação”, mas não de eleição de um mediador propriamente dito.
As partes são protagonistas do sistema sui generis criado sob a orientação dos escritórios ou advogados para se encarregar de determinado caso. Por exemplo, o uso da escuta separada, primeiro uma das partes é ouvida pelos dois a advogados (da parte e da contraparte) e depois a outra, no mesmo dia/ambiente ou em dias/ambientes separados. As vezes se identifica uma pessoa ponte, que será chamada para uma próxima rodada. Isso tudo ocorre de modo transparente, em muitos casos de modo informal, mas autorizado.
Sobre as mencionadas técnicas aplicáveis a mediação em empresas familiares, destacam-se os modelos de Harvard, o Transformativo e o Circular-Narrativo, cabendo as partes orientadas pelo plano e para prevenir litígios, já nos primeiros sinais de divergências, deflagrar a mediação antes que as agruras repercutam em mágoa, sofrimento e rancor, sentimentos passíveis de ocorrer com mais frequência nas questões de ordem familiar e societária.
O Modelo de Harvard mais se aproxima da negociação, pois o mediador tem foco no interesse das partes, procurando separar as pessoas do problema, e além de facilitar busca soluções criativas. Já pelo Modelo Transformativo o mediador altera a posição das partes, para que um lado compreenda o outro lado, ou seja, coloque-se na condição, reinterpretando os valores, pontos de vista e condutas. Pelo Modelo Circular-Narrativo a comunicação é o elemento fundamental. As partes são provocadas a avaliar o conflito sob diferentes versões, no sentido de gravitar/circular em torno de um mesmo ponto sob olhares diferentes. E é a partir da narração, novas reflexões.
Os mediadores pelo Sistema aqui convencionado de Duas Etapas poderão lançar mão de quaisquer um dos modelos e adaptá-los a novas experiências e métodos, pois cada caso poderá sugerir caminhos distintos.
Por fim, quando se fala em governança de tratamento do litígio, lembre-se que tal estrutura jurídica é apenas uma parcela de algo maior, mas que interage com os acordos de quotistas/acionistas, os estatutos societários, os planejamentos sucessórios, de organização e proteção patrimonial, os comitês e conselhos familiares no âmbito das empresas.
Tais balizas estarão presentes, por exemplo, nas bem estruturadas holdings não financeiras, para organização e proteção patrimonial, administração de imóveis próprios, para incorporação e/ou compra e venda de imóveis, também nas empresas com outras atividades econômicas vinculadas ao comércio, serviço, indústria ou agronegócio, organizadas ou não sob um poder de controle central e relação de subsidiariedade.
Cabem, portanto, construções criativas, contratuais-legais e sobretudo éticas, visando a melhor obtenção do resultado do Sistema de Duas Etapas para a solução dos conflitos por meio da mediação no âmbito do tratamento dos conflitos em empresas familiares, mas não só, o sistema é adaptável para quaisquer estruturas de governança.
Notas e referências
[i] CAHALI, José Francisco. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação, Resolução CNJ 125/2010. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 62.
[ii] SANDER, Frank and CRESPO, Mariana Hernandez, 2008. University of St. Thomas School of Law. A Dialogue Between Professors Frank Sander and Mariana Hernandez Crespo: Exploring the Evolution of the Multi-Door Courthouse. Vol 5, Artcle 4. p. 666-667.
[iii] Art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade (Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, com redação dada pela Emenda nº 1, de 31.01.13).
Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Novo Código de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão (Redação dada pela Emenda nº 2, de 08.03.16).
[iv] CAHALI. José Francisco. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação, Resolução CNJ 125/2010. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 66.
[v] PRADO, Roberta Nioac. Governança familiar. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 119.
[vi] PRADO, Roberta Nioac. Governança familiar. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 118.
[vii] PRADO, Roberta Nioac. Governança familiar. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 118.
[viii]MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário, sociedades simples e empresárias. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 37.
[ix]PEREIRA, Carlos Martins. Qual é o grande desafio à longevidade das empresas familiares brasileiras, segundo a Dom Cabral. <https://exame.com/negocios/qual-e-o-grande-desafio-a-longevidade-das-empresas-familiares-brasileiras-segundo-a-dom-cabral/>. Acesso em 15/09/2023.
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Artigo disponível: A O SISTEMA DE DUAS ETAPAS: MEDIAÇÃO NAS EMPRESAS FAMILIARES E A IMPORTÂNCIA DO ADVOGADO – Empório do Direito (emporiododireito.com.br)